Perfil / Poesia de cinema
Maria Caldas, 60 anos, revela por que largou a carreira de atriz depois do sucesso de “Redenção”
Margareth Xavier
Publicar foto de Maria Caldas
Nasceu em Ubaíra – Ba
A escolha da palavra certa. Depois, a decisão: deixá-la escapar na cadência de um verso ou prendê-la para sempre, entre as coisas que jamais devem ser ditas? Assim a poeta Maria Caldas, 60 anos, seleciona de seu cotidiano casos e histórias que merecem ou não ser contados. Atriz do primeiro filme baiano, Redenção, dirigido por Roberto Pires, apresentadora da TV Itapoan e TV Aratu, na década de 1960, ela é hoje dona de uma invejável capacidade de recortar detalhes e grudá-los com sagacidade. Até hoje agradece a Simone de Beauvoir e a Jean Paul Sartre.
Quando Maria Caldas gravou Redenção, ainda não tinha idéia dos rumos que sua vida iria tomar. Aos 17 anos, pouca gente tem. “Tinha saído de um convento, morava em um pensionato e trabalhava em um loja de discos”, conta. O convite, vindo ao acaso de dois rapazes que entraram na loja, Oscar Santana e Hélio Lima, pareceu brincadeira. Nova e muito bonita, Maria Caldas guardava de si mesma uma imagem bem diferente, a da época em que ainda estava no convento. “Muito gorda e cheia de espinhas, acho que essa imagem da moça feia e retraída nunca me abandonou”, fala.
Não era brincadeira. O filme estreou em 1959, a tornou conhecida, rendeu convites para trabalhar como modelo. Mas Maria Caldas não se aquietava. “Não me acostumava à idéia de ser conhecida. Fui para São Paulo, onde trabalhei em uma concessionária de automóveis. Quando voltei para Salvador, recebi o convite para a TV, recém inaugurada”, lembra. Ser garota propaganda na época não era fácil. Para colocar mais cimento em uma base que por si só era sólida, Maria Caldas, como várias de suas contemporâneas, adotou o Segundo sexo, de Simone de Beauvoir, como livro de consulta diária. “Acho que dali tirei a segurança que precisava para driblar os incômodos de ser conhecida naquela época”, comenta.
Carreira de socióloga
Com Beauvoir veio Sartre e A náusea: mais de 20 leituras. Era pouco. Sentia que o mundo ruía a seu redor e queria mais. “Decidi entrar para o curso de sociologia porque precisava dar conta de tudo que acontecia no mundo. Era muito jovem e não sabia nada. Queria entender”, lembra. A carreira de atriz ficou de lado e a profissão de socióloga foi exercida na prefeitura de Salvador, onde realizou pesquisas na área de planejamento. Outros livros, que dividiam espaço com Bouvoir e Sartre, continuaram presentes e, entre clássicos da literatura, todos os poetas.
“Tenho surtos de paixão. Na adolescência lembro que era Augusto dos Anjos e Castro Alves. Depois passei por dezenas de outros, entre Fernando Pessoa, Manoel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e os clássicos franceses”, revela. Os surtos de Maria Caldas chegam próximos da obsessão. “Quero saber tudo da vida do poeta, releio, estudo o estilo, procuro saber tudo”, conta. Da mesma forma, sua produção poética também a arrebata do cotidiano. “Gosto da poesia quando ela vem pronta e me toma, mas essas são raras, são especiais. Depois preciso mexer, mudar, melhorar”, observa.
Os olhos se voltam para a janela e a voz embarga quando Maria Caldas lembra dos textos que escreveu quando ainda morava eu São Paulo. “Como eu queria não os ter perdido, mas não guardei nada”, diz em um lamento, que aos poucos se transforma em reflexão: “Não sei o que deve ter saído naquela época, não lembro de nada. Hoje consigo definir minhas fases, sei que em cada uma delas está meu depoimento, meu testemunho do mundo e de mim mesma. Queria ter o meu testemunho dos 20 anos”.
No recortar e selecionar fatos, em meio a palavras, rimas e versos, Maria Caldas tem pronto para publicação a coletânea Mel da paixão, na qual reúne suas poesias divididas em três fases: Versos esparsos, de 1980, O mel da paixão – 1998, e O mel da paixão 2000. “Continuo produzindo muito agora, mas já fechei o livro e quero publicá-lo, estou em busca de editora”, sugere. Em seus textos, fragmentos da menina traquina nascida em Ubaíra, da mulher socióloga, da mulher amante apaixonada ou a argúcia de um olhar feminino sobre o mundo. “Estou em cada uma de minhas poesias, não tenho nada contra o confessional. Mesmo naquelas em que me preocupo com a forma, com a concisão e presteza dos versos, estou lá”, afirma.
Quanto aos poemas de amor, Maria Caldas é enfática: “Quem está apaixonado não quer ler poesia concreta. Quer versos com rima, falando de amor mesmo e pronto”. Em sua fala também estão presentes concisão e dúvida, reorganização do pensamento, idas e vindas de idéias que dão cor e ritmo à vida e a espremem em conceitos conturbados. “Felicidade demais dói, você não sabia disso?”, indaga, com o olhar afiado, quando evita falar de assuntos que a seduzem por demais. Ao mesmo tempo, confessa-se uma amante do sofrimento e escolhe versos, ora de risos, ora de lágrimas. “De um poeta, as vezes só preciso de um verso, de mais nada. Só um verso pode emocionar. Nele está a vida toda”, arremata.
POEMAS DE MARIA CALDAS
Não se espante
é somente
a linha
do horizonte
Delícia
Na minha
antropofagia
como o que sobra
de ti:
poesia
Surrealista
Vejo uma árvore de palavras
saindo do seu peito.
Um pé de umbuzeiro
– folhas entrelaçadas
Que bela arquitetura
literária
suas palavras.
Elas se espalham
pelas ruas, jornais
e livrarias
cortam (não como punhais que é muito batido)
armam e como armam
uma arrojada estrutura
de romances, contos e casos.
Como me dizem! Suas palavras!